PORQUÊ O USO DO DIVÃ NA PSICANÁLISE?

06-07-2023

Já passaram mais de cem anos, mas o divã ainda existe. Símbolo da psicanálise, objeto associado a Freud e à investigação dos processos mentais inconscientes, o divã continua a ser usado nos nossos dias nas sessões de psicanálise. Um paciente deitado no divã e o psicanalista sentado ao lado, eis a imagem de marca da psicanálise. E o cerimonial, assim o designou o próprio Freud, ainda se mantém. Mas, porquê? Porquê o uso do divã nas sessões de psicanálise?
Nas consultas de psiquiatria o médico e o paciente estão sentados, face a face, por vezes com uma secretária (e um computador) de permeio.
Nas sessões de psicoterapia paciente e terapeuta estão igualmente sentados, embora sem nenhum objeto entre eles.

Então, porquê o uso do divã na psicanálise?

Para conhecermos as razões temos de recuar a um tempo em que a própria psicanálise ainda nem existia e Freud, apesar de estar a aproximar-se dos trinta anos, estava longe de imaginar que um dia haveria de a inventar. Aliás, quando olhava para o futuro nem se via como um clínico, a atender doentes, mas sobretudo como um professor e também um cientista a trabalhar num laboratório de Neuropatologia e que um dia haveria de desvendar os segredos do cérebro. Era esse o seu sonho e era para isso que trabalhava.

Mas não foi esse caminho que o destino lhe reservou. "O destino" é uma maneira de falar; na verdade, o que determinou o rumo que acabou por tomar foi o amor. Freud estava apaixonado e ansioso por casar porque o namoro arrastava-se há anos e, por várias razões, ele e Martha, a futura mulher e mãe dos filhos, raras vezes estavam juntos. O facto é que, para poder casar, tinha de ter dinheiro e para o conseguir teria de se dedicar à clínica. Foi esse o conselho sábio de alguns dos seus mestres de então.

Só se abrisse um consultório e começasse a atender aí os seus pacientes é que poderia ganhar o suficiente para poder casar. Determinado como era, assumiu que, se era isso o que era necessário, seria o que iria fazer. E fê-lo. No dia 25 de Abril de 1886, um domingo de Páscoa, anunciou num jornal de Viena que iria abrir o seu próprio consultório. O problema era que a preparação médica que obtivera era sobretudo neurológica. A psiquiátrica havia sido muito pobre e breve, e por isso, quando começou a receber os primeiros pacientes sentia-se ignorante e impreparado. Os tratamentos a que recorria eram os únicos disponíveis na altura: o repouso, a alimentação equilibrada e a eletroterapia, um tratamento que consistia na aplicação de pequenos e inócuos choques elétricos que atuavam apenas pelo efeito placebo. Mas pouco depois começou também a usar a hipnose, que aprendera num estágio que havia realizado em Paris algum tempo antes.

Acontece que Freud era pouco talentoso na arte da hipnose e isso fazia com que muitos pacientes não atingissem a profundidade necessária no estado hipnótico.

Estando o paciente sentado, como era mais habitual, dificilmente conseguia atingir aquele grau de profundidade. Então, para o poder atingir, Freud decidiu pedir aos pacientes para se deitarem. E foi desse modo que passou a ser mais fácil hipnotizá-los. Mas, ainda assim, as dificuldades não desapareceram. Alguns doentes dificilmente atingiam a profundidade necessária e por isso, aos poucos, Freud foi prescindindo do uso da hipnose e adotando o método da associação livre de ideias. Mas não deixou de fazer uso do divã. Porquê? Simplesmente para que os pacientes se sentissem confortáveis e relaxados. Assim, convidava-os a deitarem-se, mas, em vez de os hipnotizar, pedia-lhes que exprimissem livremente todos os pensamentos, ideias, fantasias que lhes ocorressem, mesmo que lhes parecessem irrelevantes, desagradáveis ou desprovidos de sentido - era esse o princípio da associação livre de ideias.

Do ponto de vista da técnica e das suas repercussões terapêuticas, deu-se uma mudança fundadora, do uso da hipnose para o da associação livre de ideias. Mas houve uma continuidade, e esta foi estabelecida justamente pelo divã.

O uso do divã constituiu assim um remanescente do seu uso na hipnose. No entanto, caso não tivesse alguma função importante ou algum tipo de utilidade (para além do conforto), esse não seria um motivo suficientemente válido para que o seu uso se tivesse mantido. Se o motivo fosse apenas o já referido conforto, porque não usá-lo nas sessões de psicoterapia e mesmo nas consultas de Psiquiatria? Então, qual será essa utilidade? E qual a função que justificou a manutenção do seu uso?

Em primeiro lugar, e como é lógico, os próprios pacientes apreciavam o conforto que o divã lhes proporcionava. Aconteceu até que Madame Benvenisti, uma das suas pacientes, lhe ofereceu um divã. Já que o psicanalista lhe ia examinar a cabeça, justificou a paciente, então que estivesse confortável. Tratava-se de um divã bege, muito simples, que Freud cobriu com vários tapetes persas em tons de vermelhos e almofadas de veludo. Isto aconteceu por volta de 1890, e no ano seguinte, quando se mudou para a Berggasse 19, a nova casa em Viena, onde também montou o consultório, levou para lá o novo divã. Freud e a família permaneceram aí até 1938, e ao longo desses quase cinquenta anos, foi daquele mesmo divã que Freud jamais se separou. Ao ponto de, quando se mudou para Londres, onde se exilou e permaneceu até à sua morte, que aconteceu um ano depois, ter para aí levado o divã.

Já passaram mais de cem anos, mas o divã ainda existe, disse eu logo no início deste texto. Percebemos agora que o seu uso ainda se mantém, mas é também aquele divã particular, o que em 1890 lhe foi oferecido por Madame Benveniste, que ainda existe.

Ainda hoje, quando visitamos o Freud Museum, em Londres, e olhamos para o divã onde os seus pacientes se deitavam, é aquele mesmo divã, o que foi oferecido por Madame Benvenisti, que estamos a ver.

E foi só ao fim de mais de cem anos, em 2013, que o divã foi finalmente restaurado. O processo foi documentado, sendo possível vê-lo no YouTube, despido, despojado, privado dos tapetes, das almofadas e da magia que o revestiu durante mais de um século.

O conforto dos pacientes foi, portanto, um dos fatores que justificou a manutenção do seu uso.

Outro fator tem uma justificação clínica. Deitado, descontraído, com um mínimo possível de estímulos que o possam distrair, o paciente fica mais regredido e focado na sua vida interior, facilitando desse modo o processo analítico. Deitado, o paciente não vê o analista. Este está sentado ao lado do divã, do lado onde se encontra a cabeça do paciente, e só consegue vê-lo se se voltar para o lado. Caso contrário, não o vê. O analista não vê o paciente, apenas o ouve; mas também não é visto. O paciente não se apercebe, portanto, das expressões faciais do analista.

Seja como for, o uso que Freud fez do divã e a divulgação que essa prática beneficiou tiveram tal impacto nos procedimentos técnicos dos psiquiatras que, a partir de 1940, a pequena Imperial Leather Furniture Company, localizada no bairro Queens, em Nova York, passou a vender divãs "como se fossem bolos saídos do forno". Sempre que alguém entrava na sua loja, ele dizia: "Sabe, nós fazemos o divã de Freud."

Para o uso do divã na psicanálise temos portanto a questão do conforto, temos a justificação clínica que vimos agora, e temos, finalmente, uma terceira razão.

Freud atribuiu-a a um motivo pessoal, e exprimiu-o assim:

"Não suporto ser encarado fixamente por outras pessoas durante oito horas (ou mais) por dia."