PESSOAS QUE NÃO EXISTEM

20-08-2024


Não quero falar-vos de fantasmas, de espíritos ou de personagens de ficção, sejam estas reais (dentro da ficção) ou virtuais (dentro do mundo desta nova realidade que é o reino da net). Vou falar de pessoas bem reais, de carne e osso.
Os biólogos dizem, e com razão, que somos feitos de células. Os químicos dizem, igualmente com razão, que somos feitos de moléculas, as quais são compostas por átomos. E os físicos, com não menos razão, afirmam que somos feitos do pó das estrelas. O prestigiado astrónomo e astrofísico Português David Sobral, afirma mesmo que 90 % do que nos constitui proveio de estrelas antigas e os restantes 10 % tem quase 14 mil milhões de anos, aproximadamente a idade do universo. Como dizia Lavoisier, nada se cria, nada se perde - tudo se transforma. E, se quisermos ir ainda mais longe, creio que o que está escrito na Bíblia é: Lembra-te que és pó e ao pó hás-de voltar.
Entretanto, Próspero, personagem de William Shakespeare, não estava menos certo quando afirmou na peça teatral "A tempestade" que somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos.
A nossa componente física é real e a psíquica, embora não a vejamos, é igualmente real. É de tudo isto que somos feitos, e é disto que tenho estado a falar.
Vistos de fora todos nós somos assim, mas, por dentro, se pudéssemos olhar para além das estruturas físicas que nos constituem, e observássemos o que existe dentro da mente de algumas pessoas, o que veríamos seria uma espécie de vazio. Digo espécie porque não existe nada que se lhe assemelhe.
Há pessoas que chamam "vazio interior" ao que sentem, mas, ainda assim, esta expressão não traduz de forma satisfatória e realista a sensação dolorosa que ela pretende significar.
Algumas fazem menção a um empobrecimento e esvaziamento dos sentimentos, tanto dos agradáveis como dos desagradáveis. Outras chegam a dizer que o que existe dentro de si é uma espécie de morte interior por ausência de emoções, sentimentos, desejos e fantasias. E outras ainda, para exprimirem a sensação que as corrói, referem sentir-se "desencarnadas" ou "descorporizadas".
Até agora tenho estado a referir-me a uma vida interior "vazia", dolorosa e sem sentido, mas, ainda assim, com um sentimento de existência subjacente. Isto ainda é suportável. De forma dolorosa e angustiante, mas suportável.
Mas, o que dizer da sensação excruciante que um dia me foi transmitida por alguém que se encontrava num sofrimento quase insuportável? As palavras não faziam jus à dor que sentia, mas o que disseram foi: "Eu já estou morta por dentro há muito tempo. Por fora sou só um ser como tantos outros, mas por dentro estou morta". E a sensação mais concreta, transmitida com uma dor para a qual não existem palavras, era: "Sinto-me a desfazer por dentro".
Há pessoas que se sentem transparentes, não por serem ignoradas pelos outros nas situações sociais em que se encontram, mas por sentirem que não estão vivas. Quase poderíamos dizer que vivem como imaginamos que viveriam os robôs. Comportam-se como vêm os outros fazê-lo, de acordo com as regras de conduta que aprenderam enquanto ainda estavam vivas. Elas vivem mas não existem. O corpo vive e a mente está morta. Numa dada altura das suas vidas, a mente morreu. Claro que isto não é possível em termos biológicos porque a mente é função do corpo e uma parte não existe sem a outra. Mas é a expressão que conseguem transmitir para explicarem a sensação desumana de não existirem.
Mas gostaria de finalizar estas palavras transmitindo a ideia de que, na maioria destes casos, há uma coisa que pode voltar a dar vida a estas pessoas, ou melhor, às pessoas (porque são iguais a todos nós) que tiveram a desventura de lhes acontecer tamanha desgraça: a relação com outras pessoas, uma relação que permita reacender aquela chama com que nascemos e que só se apaga quando a vida biológica chega ao seu fim.
NOTA: No próximo texto falarei sobre como poderá ser essa relação.

 

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