O AMOR QUE CURA
Numa carta que escreveu a Jung em 1906, Freud disse que a Psicanálise é, em essência, uma cura pelo amor.
A opinião da psicanalista Americana Nancy McWilliams, mais de um século depois, vai no mesmo sentido, mas é mais esclarecedora: Não será o único fator terapêutico, mas o amor talvez seja o que permite que os outros processos curativos façam o seu trabalho.
Dizendo-o de uma maneira ou de outra, são muitos os que partilham esta ideia, daí ser da maior
Não é um amor romântico, isso é certo, nem é do âmbito do erotismo, da paixão ou das relações
Então, qual é a natureza deste amor? Creio que a questão pode começar a clarificar-se se aceitarmos o facto de que numa psicoterapia a relação que se estabelece é de intimidade, uma intimidade especial, digamos assim.
“Nós não somos amigos", costumava dizer uma grupanalisanda quando qualificava o tipo de ligação
Cada uma das partes dá o melhor de si, mesmo naqueles momentos, prolongados em certas fases, frequentes nalguns períodos, de procura, exploração, esclarecimento.
O paciente conta, partilha, revive experiências da sua vida que foram ou são marcantes. Mostra como é e como funciona. Não é uma tarefa fácil, esta. As resistências, a vergonha, a angústia espreitam e intrometem-se. É intenso, muitas vezes, o medo de se mostrar como é. Como em tantas e tão variadas circunstâncias da vida, mostram-se sobretudo as partes "boas" - as "más" (agressividade, ódio, raiva) não seriam aceites e poderiam ser rejeitadas, criticadas ou alvo de retaliação e abandono. Noutros casos são as "más" as que são apresentadas, permanecendo as "boas" preservadas e resguardadas. "Se me aceitarem assim, então posso ter a certeza de que me aceitam como sou" seria o pressuposto, caso o mecanismo fosse consciente - acontece é que muitas vezes não é, e a pessoa comporta-se dessa maneira porque, assim o julga, é mesmo assim.
O terapeuta acolhe, aceita o paciente como ele é, com todas as suas partes, as "boas" e as "más", e dedica-se a ele incondicionalmente.
Dando o melhor de si mesmo, cada um contribui com a sua parte para um trabalho conjunto. É um trabalho intelectual, esse, mas é sobretudo uma relação afetiva. O paciente confia no terapeuta e mostra-se como é. O terapeuta usa todo o seu ser na compreensão daquela pessoa que, em muitos momentos, é a mais importante e significativa.
Paciente e terapeuta não se relacionam fora das sessões, não são amigos no sentido social do termo, não têm intimidade física e o terapeuta não expõe a sua vida pessoal e social. Transgredir estes limites poderia ser desastroso, quer para a técnica terapêutica, quer para cada um dos envolvidos. É por todas estas razões que se diz que, sendo íntima, uma relação terapêutica é-o de uma forma muito especial.
No seio desta intimidade, e como consequência da cooperação e dedicação que se estabelecem, surge o amor. O terapeuta exprime e dá o seu amor quando, sobretudo em momentos de elevada carga afetiva e emocional e naqueles de maior vulnerabilidade e recetividade do paciente, se sente profundamente ligado ao paciente e usa todos os seus recursos para o proteger, compreender, cuidar e fazê-lo crescer.
Talvez existam mais definições de amor do que o número de pessoas que opinam sobre o tema. É natural. Um sentimento tão complexo, e ao mesmo tempo tão subjetivo, desafia a pretensão que possa existir de reduzi-lo a uma definição operacional. Apesar disso, é importante sabermos ao que é que nos referimos quando falamos de amor. Nesse sentido, e em função do tema geral deste livro, proponho como hipótese de trabalho a seguinte ideia: amar uma pessoa é tê-la dentro de nós e, apesar disso, aceitá-la como diferente, respeitá-la na sua individualidade e darmos o melhor de nós para que ela cresça e encontre o seu caminho. Ao tê-la dentro de nós, ela sentirá que ocupa aí um lugar importante, o mais importante.
Termos uma pessoa dentro de nós significa que conseguimos adquirir uma capacidade que constitui uma das mais importantes tarefas do desenvolvimento - a "constância do outro no interior do sujeito".
Ao longo desse desenvolvimento há, porém, outra tarefa ainda mais fundamental e prévia - a "constância do sujeito no interior do outro".
Vejamos o que são e em que consistem tais tarefas, considerando que os conceitos subjacentes têm sido desenvolvidos com sabedoria e profundidade por Coimbra de Matos.
A capacidade para manter constante e viva a representação mental de uma pessoa, digamos a mãe, é adquirida cedo, cerca dos 2–3 anos. Conseguida essa aquisição, a criança começa a ser capaz de "saber" que ela continua a existir mesmo quando não está presente. Mais tarde, ao longo da vida e aquando das diversas separações a que estamos sujeitos, essa capacidade permite evocar as pessoas fisicamente ausentes sentindo a sua presença dentro de nós. O nosso mundo interno é "povoado" pelas pessoas que fazem parte da nossa vida, mesmo quando não estamos perto delas.
Pelo contrário, o mundo interno das pessoas que não adquiriram essa capacidade é vazio e só é "preenchido" quando os outros significativos estão fisicamente presentes.
Mas há uma outra tarefa do desenvolvimento que é adquirida antes daquela: a capacidade para manter a constância de si dentro do outro - sabermos e sentirmos que ocupamos um lugar importante dentro de outra pessoa.
Eliot é uma criança especial. Foi escolhido pelo ET para ser seu amigo. Já perto do fim do filme de Steven Spielberg, antes do ET partir numa nave espacial para o seu planeta, ele e Eliot estão frente a frente. ET diz: "Vem", Eliot responde: "Fica". Não podem ficar juntos. A seguir abraçam-se longamente. E mesmo antes de partir, ET estica o seu longo dedo, que se ilumina na extremidade, aproxima-o da testa de Eliot e diz-lhe: "Vou ficar sempre aqui".
O que o ET disse a Eliot foi que, mesmo na sua ausência, ficaria presente na mente do amigo. Como um bom objeto interno, diz-se em linguagem psicanalítica.
I sto é a constância do outro no interior do sujeito.
Ellie, personagem interpretada por Jodie Foster no filme "Contacto", baseado no romance homónimo de Carl Sagan, dedicou-se de corpo e alma à busca de vida extra terrestre. Os pais haviam morrido muito jovens. Quase não se lembrava da mãe, mas do pai, com quem viveu mais tempo, guardava uma saudade imensa.
Um dia, depois de tantos anos à espera de um sinal, recebeu-o finalmente. Seres do espaço longínquo enviaram as instruções para a construção de uma máquina que a levaria até eles. O destino foi uma construção que simulava uma paradisíaca praia terrena. Quando se encontrava lá, avistou ao longe uma figura. Tratava-se de um deles, sabia-o bem, mas havia tomado a forma do pai.
"E agora ei-lo ali - não um sonho ou um fantasma, mas carne e sangue. Ou coisa muito parecida.
Quando chegou perto dela, disse-lhe: "Senti tanto a tua falta…"
Ellie sabia que continuava a ocupar um lugar muito importante dentro do pai, mesmo que ele já não existisse.
Isto é a constância do sujeito no interior do outro.
Numa psicoterapia, o amor que cura é aquele que contempla as condições referidas atrás e que agora reformulo.
O terapeuta tem o paciente dentro de si. Isto pressupõe que a relação que se estabeleceu permitiu a internalização do paciente por parte do terapeuta, tornando-o um "bom objeto interno", uma pessoa importante e significativa na sua vida. Para o paciente, poder encontrar-se dentro do terapeuta, isto é, sentir que tem existência e significado dentro dele, constitui uma experiência de vital importância.
Há pessoas que não sabem quem são nem o que são. Não conseguem definir-se. Sentem que não têm consistência, nem rumo, nem propósito. Não se trata apenas de não saberem que profissão hão-de ter, quais as ideias e gostos que os caracterizam ou que tipo de pessoa são. Trata-se de sentirem que não têm um significado. Nesses casos, a única oportunidade que a pessoa tem de adquirir forma, consistência, importância e significado é quando começa a ganhar existência dentro do terapeuta.
Ao longo de alguns meses de terapia, em que parecia não estar a acontecer nada, uma dada paciente falava, contava coisas e referia-se a acontecimentos sem que eu conseguisse construir na minha cabeça um retrato dela digno desse nome. Tanto nas sessões como fora delas, a sua presença era forte, mas vaga e indefinida. Dava por mim a esquecer-me do que me havia dito e, mais significativo ainda, a não recordar sequer o seu nome.
Houve momentos em que senti que estava, digamos assim, a enganá-la porque sentia que não só não estaria a ajudá-la como não via qualquer progresso. Progresso em quê?, questionava-me, dado que nem sequer havia compreendido bem qual era o seu problema e quais as suas queixas.
O facto é que nunca faltava e dizia até que a "terapia" era muito importante e estava a ajudá-la muito.
Gostava dela, sem perceber bem porquê, e estava muito empenhado em ajudá-la, mesmo sem saber em quê.
Por vezes, questionava-se sobre a razão pela qual eu me empenhava em continuar a ajudá-la. E um dia disse: "É que eu não sou ninguém. Vivo por viver. Ando por andar. Nem sequer sei o que sou."
Entretanto, com o decorrer do tempo, dei por mim a pensar nela fora das sessões, a preocupar-me com alguns dos seus comportamentos e sintomas e a sentir empatia com o seu sofrimento. O seu nome e a sua pessoa começaram a tomar forma dentro de mim. Foi preciso começar a ter existência dentro de mim para passar a sentir-se existir.
O paciente ganha existência dentro do terapeuta. Passa, ele próprio, a ter existência. Depois, o terapeuta aceita-o como ele é, com as suas qualidades e defeitos, com as suas partes "boas" e "más", incentiva-o a escolher o seu caminho e a viver a própria vida, apoia-o nas opções que toma, agora com mais liberdade, e ajuda-o a crescer e a tornar-se ele próprio.
É este amor que salva o paciente. É ele que o torna uma pessoa.
Quem ama não teme. Quem é amado não sofre. Poder amar e saber amar é a força e a sabedoria da vida; querer amar, o aguilhão que nos faz terapeutas e nos salva como doentes. Deprimidos? Talvez não! Poetas do amor, e não da saudade.
Foi assim que disse Coimbra de Matos, um terapeuta que cria novas relações, que acredita no amor e que acredita que é o amor que cura.
NOTA: este texto foi retirado de: NASCEMOS FRÁGEIS E RECEBEMOS ORDENS PARA SERMOS FORTES - Um olhar sobre o narcisismo e a autoestima, de JOÃO CARLOS MELO. BERTRAND EDITORA, 2019.