NÃO TENHA MEDO DE TER MEDO
NÃO TENHA MEDO DE TER MEDO
É normal sentir medo. Todos os animais o sentem. E nós, animais racionais, também, independentemente da idade, género, etnia ou cultura. Claro que há pessoas que querem convencer os outros, e a si próprias, que não têm medos, e, para esse efeito, usam expressões como "Eu não tenho medo, tenho é receio", ou "Eu não tenho medo, tenho é respeito"; mas isso não é verdade todos temos medos.
E ainda bem que assim é porque o medo é uma das mais importantes emoções no contexto da sobrevivência e da evolução das espécies. Foi o medo que os nossos antepassados sentiram que lhes permitiu protegerem-se dos predadores, do mesmo modo que é o medo que nos faz ter cuidado ao atravessar uma estrada para não sermos atropelados. O medo é útil, portanto.
Mas, em excesso, pode retrair-nos e impedir-nos de enfrentar os obstáculos que a vida nos impõe.
Então, o que é o medo? Numa definição simples, podemos considerar que é um conjunto de reações a uma ameaça ou a um perigo. Esse perigo pode tomar a forma de um objeto (um animal, uma pistola, uma pessoa com ar ameaçador), um evento (um assalto, um sismo) ou uma situação (uma viagem de avião, por exemplo).
A intensidade da reação corresponde a diferentes graus do medo, os quais, do menos para o mais acentuado, podem tomar as seguintes definições: a apreensão (uma expetativa negativa sobre uma situação que pode ser ameaçadora); o temor (a convicção de que se está perante um perigo, associada a uma poderosa relutância em encontrar o objeto ou situação assustadora); pânico (um medo excessivo e avassalador acompanhado de hiperatividade, com aceleração da frequência cardíaca e respiratória, tensão muscular e um estado doloroso de alerta e forte sensação de perigo); e, por fim, o terror (a forma extrema do medo, em que a pessoa pode ficar petrificada e com paralisia psicomotora).
A quantidade de medos que existe é praticamente incontável. Há os frequentes e os raros, os racionais e os irracionais e ainda os que herdámos dos nossos antepassados e os que vamos criando ao longo da vida.
Alguns dos medos que nos afligem foram herdados dos nossos antepassados, independentemente de qualquer experiência. Em relação ao medo das alturas, por exemplo, não é necessário termos caído do andar alto de um prédio para termos esse medo - viemos ao mundo já "programados" com esse medo.
Vou dar apenas alguns exemplos dos medos que nos habitam: medo do escuro, medo de morrer, medo de viver, medo de ser avaliado, medo de ser humilhado, medo da autoridade, medo das alturas, medo dos monstros, medo dos mortos, medo de fantasmas, medo do medo, medo de adormecer, medo de perder o controlo, medo de enlouquecer, medo dos outros, medo de andar de avião, medo de trovoadas, medo de melhorar, medo do sucesso, e tantos, tantos outros…
Há várias formas de lidar com o medo. Há atitudes que consistem, não em enfrentar a situação que provoca medo, mas em retrair-se e recuar perante ela.
A esta atitude alguns autores chamam cobardia, considerando uma dimensão física, uma intelectual e a que mais comumente se identifica com o termo: a moral.
Há também o destemor, a ousadia e a audácia.
E há a coragem, que relaciono com uma imagem que me segue há anos. Não, não é uma memória que me persiga como uma nuvem negra. É mesmo uma imagem. E segue-me como uma nuvem que dá tréguas a um sol demasiado quente e que, longe de ameaçar, é inspiradora.
Não me recordo do nome do filme nem tampouco da história. A única coisa de que me lembro é da cena final, e foi essa que se transformou naquela imagem que me acompanha.
Estão várias pessoas, incluindo a mulher e os filhos do protagonista, numa velha fábrica. Ainda estão seguras numa plataforma - um corredor estreito e instável. Por baixo encontra-se o depósito aonde haverão de cair, e morrer, já que nada existe entre elas e um caldeirão enorme de ácido que enche o depósito. Mas, de repente, vislumbra-se o que poderia ser um milagre: uma roda, como se fosse um volante, teria de ser acionada e rodada até tapar o depósito com uma estrutura de ferro. Mas, para que isso acontecesse, seria necessário alguma das pessoas saltar do lugar onde estava, agarrar o volante e rodá-lo. Uma tarefa não impossível, mas muito difícil. O impossível seria sobreviver depois disso - uma vez agarrada à roda, não seria possível voltar atrás. Para salvar todos teria de morrer.
No fim, todos se salvaram, exceto o protagonista. Deu a vida por todos. Herói? Mártir? A resposta depende do ponto de vista que se queira adotar. Muito se poderá dizer sobre este homem, e nenhuma homenagem que lhe fosse feita seria suficiente para imortalizar a sua memória. Mas agora, para o propósito deste livro, o aspeto que quero salientar é a coragem que ele teve.
Ter coragem não é não ter medo. É claro que há pessoas mais medrosas do que outras, e também é verdade que há pessoas que são corajosas porque não sentem medo. Mas, a coragem, a verdadeira coragem, não é essa. É enfrentar uma determinada situação, mesmo sentindo medo. Mas ainda é mais que isso. É, também, enfrentar o perigo ou arriscar perder algo valioso a fim de, se tudo correr bem, conseguir um bem maior.
O nosso protagonista foi corajoso, não há dúvida. A questão é: ele foi (naquela situação) corajoso, ou era corajoso?
Confesso que não me recordo do filme para poder dar uma resposta, mas, se nos abstrairmos da história da personagem e considerarmos a situação em abstrato, podemos admitir que aquele homem bem podia ser um indivíduo igual a tantos outros, com medos, inseguranças e angústias comuns a todos nós, mas que, naquela situação concreta, provavelmente movido por uma força psicológica inusitada que o levou a salvar a família, foi corajoso naquele momento. Mas vamos levar o raciocínio mais além. Vamos admitir que não estava lá a sua família. Faria ele o mesmo? Creio que a resposta mais certa seria: talvez sim, talvez não.
Vamos ainda continuar no campo das hipóteses e admitir que aquele foi, não o ato mais corajoso da sua vida, mas o único. O que poderia significar esta hipótese? Adiantei esta possibilidade para defender a ideia de que qualquer pessoa, qualquer um de nós, pode ser corajosa. Por muitos medos que tenhamos, também podemos ser corajosos.