CRIANÇA QUE HÁ EM NÓS
Temos muito bem gravado dentro de nós todas as experiências que vivemos desde que nascemos (para além de outras memórias mais ancestrais). De algumas lembramo-nos, mas de outras, a maioria, não. Estes factos não são surpreendentes e podem até tornar-se mais compreensíveis se os olharmos à luz do funcionamento da memória.
De forma sintética podemos considerar que existem dois tipos de memória, a explícita e a implícita.
A explícita refere-se a factos e situações e também a episódios ou vivências pessoais. Essas informações, depois de "fixadas", podem ser evocadas em forma de lembranças ou recordações.
A implícita, também referida como memória emocional e afectiva, é uma memória não consciente, que é recuperada não através da evocação consciente, como acontece na recordação, mas através de reacções emocionais e comportamentos.
O armazenamento em memórias implícitas não depende de áreas especializadas e específicas do cérebro, como acontece com as explícitas. Nestas, o hipocampo e, posteriormente, certas zonas do córtex são as áreas fundamentais para a sua consolidação. Nas memórias implícitas, as experiências ficam "registadas" em circuitos cerebrais (localizados na amígdala cerebral, nos núcleos da base e no cerebelo) que são ativados aquando de reacções emocionais e comportamentos. Depois, a reativação desses circuitos determina a repetição das mesmas reacções emocionais, desempenhos e comportamentos, sem que haja uma intervenção do córtex que leve à sua consciencialização. Vejamos o exemplo seguinte. Uma criança que tenha sido vítima de experiências repetidas de maus tratos por parte do pai, por exemplo, reagirá às mesmas com medo. Essa reacção é codificada em determinados circuitos, nos quais fica armazenada.
Mais tarde, mesmo já na idade adulta, reagirá também com medo ou sentir-se-á intimidada quando é confrontada com figuras de autoridade. Isto acontece porque a figura de autoridade funciona como um estímulo com similaridades com o pai da infância, estímulo esse que reativa os circuitos que tinham sido ativados aquando das primeiras experiências. Ao sentir-se agora intimidado, o adulto, em vez de se recordar das experiências infantis, repete as reacções que teve na altura, ou seja, a memória daquelas experiências não se manifesta como uma lembrança consciente mas como um comportamento - no caso a reacção de medo.
Para se consolidarem, as memórias explícitas requerem a integridade e a maturidade neurológica do hipocampo, que só ocorre por volta dos dois ou três anos de idade. Assim sendo, podemos colocar a questão sobre o que acontece antes dessa idade.
Essas experiências, como agora já sabemos, não poderão ser evocadas conscientemente, mas ficam "fixadas" na memória, mais concretamente passam a fazer parte da memória implícita, condicionando a vida afectiva, emocional, cognitiva e comportamental.
De tudo isto podemos concluir que a criança que há em nós não é outra coisa senão um conjunto de representações mentais codificadas no cérebro sob a forma de memórias (umas explícitas, outras implícitas) e que a evocação dessas memórias pode acontecer através de recordações conscientes e de reacções emocionais.
Esta não é uma visão romântica do tema, é apenas a descrição do que acontece no cérebro quando falamos de forma idílica da criança que um dia fomos, de quem podemos sentir nostalgia e com quem nos podemos (sempre que necessário) reconciliar e que temos a oportunidade de confortar.
Esta não é uma visão romântica do tema, é apenas a descrição do que acontece no cérebro quando falamos de forma idílica da criança que um dia fomos, de quem podemos sentir nostalgia e com quem nos podemos (sempre que necessário) reconciliar e que temos a oportunidade de confortar.