A VERDADE E A MENTIRA

20-08-2023

A VERDADE E A MENTIRA
Toda a gente mente. Começamos por volta dos dois ou três anos, quase logo desde que aprendemos a falar, e depois nunca mais paramos.
Apesar disso, estamos sempre a buscar a verdade e a condenar a mentira. Mas, as fronteiras entre a verdade e a mentira, serão assim tão nítidas?
Vejamos os casos que se seguem.
Não dizer a verdade, ficando calado. Não responder a uma pergunta. Esconder a verdade. Dizer a verdade, mas não toda a verdade, omitindo alguns factos que poderiam ser relevantes. Dizer a verdade, mas distorcendo ou exagerando alguns pormenores. Pois.
Por outro lado, há certas afirmações que, não sendo verdadeiras, não constituem mentiras. Não dizer a verdade por ignorância, mal entendido ou errada interpretação dos factos não é o mesmo que mentir.
Mentir é proferir uma afirmação com a intenção clara de criar no interlocutor a crença de que a afirmação corresponde à verdade, sabendo o autor que não corresponde.
As pessoas mentem por variadas razões.
Os investigadores que se têm dedicado a estudar a mentira têm encontrado como principais motivações para mentir as seguintes: evitar castigos ou punições (próprios ou de outros), conseguir vantagens ou recompensas, manter a sua privacidade, melhorar a autoimagem e a autoestima, evitar situações embaraçosas e críticas e controlar o comportamento dos outros, manipulando as informações a que eles possam ter acesso. E até pode acontecer alguém mentir sobre outra pessoa por lealdade a ela e para a defender de algum prejuízo.


Mentir ou não mentir não depende tanto do caráter ou de particularidades da personalidade, mas das circunstâncias. Em muitas situações em que mentir traz vantagem e evita algum prejuízo, e em que a pessoa está convencida de que não será apanhada, ela tende a mentir.
Na população em geral, quem mais mente são os adolescentes e jovens adultos, mas também as crianças, sobretudo para lidarem com as atitudes controladoras das figuras de autoridade, como os pais, professores e outros adultos, mas também com os seus iguais, como forma lidarem com situações de rivalidade e competição.
E depois há outras particularidades encontradas por esses investigadores: em geral, as pessoas de classes sociais altas mentem mais; os fatores situacionais também influenciam: é mais provável as pessoas mentirem quando se encontram num ambiente com pouca luz, quando se encontram numa situação de anonimato, mais à tarde do que de manhã e quando estão mais cansadas, particularmente pela privação de sono. As variadas situações em que as pessoas se sentem ameaçadas aumentam a probabilidade de mentirem. Estados de humor, como a tristeza, não têm influência, mas a alegria e o bem estar fazem com que as pessoas mintam menos.
A pressão provocada pelo tempo também tem influência: quando a pessoa tem pouco tempo para reagir a uma pergunta direta, tende a dizer a verdade porque, do ponto de vista cognitivo, mentir faz despender mais esforço e energia.
Se é verdade que todas as pessoas mentem, o facto é que a maioria não mente muito. E quando mente, fá-lo de forma episódica e em função das circunstâncias. São poucas as pessoas que mentem muito.


Os grandes mentirosos ou mentirosos habituais proferem um número significativamente maior de mentiras do que a maioria das pessoas, embora não haja um número concreto ou um critério objetivo que as possa distinguir.
Embora a maior parte das pessoas que mente não o faça com malícia ou para prejudicar os outros, as pessoas não gostam das pessoas que mentem, consideram-nas indignas de confiança e sentem-se zangadas quando são enganadas. E isto é valido para as pessoas honestas (as que, na maior parte das circunstâncias, não mente), mas também para as mentirosas (as que mentem com frequência). E isto porquê? Porque a verdade é, por assim dizer, mais forte do que a mentira.

Uma forma particular de mentira frequente é a chamada MENTIRA PATOLÓGICA. Esta entidade ainda não possui o estatuto de Doença ou Perturbação Psiquiátrica, mas é provável que o venha a ser.
Dos investigadores que mais se têm dedicado a esta doença, os psicólogos Americanos Drew Curtis e Christian Hart são os que mais têm trabalhado para esse efeito. Isto é da maior importância porque, cumprido esse objetivo, as pessoas vitimadas por essa doença terão mais facilmente a ajuda de que precisam.
Mas o maior mérito daqueles autores não é esse. É olhar para as pessoas que sofrem com esta doença de uma forma humana e compassiva, como veremos.
Eles afirmam, por exemplo, que estas pessoas não são as frias, calculistas e maldosas que muitas vezes se pensa. Estas pessoas não são psicopatas. Os psicopatas mentem, manipulam e prejudicam os outros sem culpa, nem remorso, nem piedade, nem empatia. Estas pessoas não são assim.
Elas mentem muito e de forma crónica (ao longo de anos, ou durante toda a vida, desde a infância), é um facto, mas, na maioria das vezes, fazem-no de forma quase automática (ainda que conscientes de que estão a fazê-lo) e sofrem muito por mentir, mas não conseguem parar de o fazer. Não só não obtêm qualquer benefício material disso, como, pelo contrário, acabam por ser muito prejudicadas.
Esta doença apresenta com muita frequência dois componentes associados ao ato de mentir: a impulsividade e a compulsividade.
A impulsividade refere-se à tendência para agir ou reagir de forma imediata, automática, sem reflexão, e sem avaliar os riscos e as consequências. O que acontece é e a pessoa aperceber-se que acabou de mentir sem ter preparado o conteúdo da afirmação que proferiu. Mas nessa altura já é tarde.
A compulsividade é a tendência para agir de forma repetida, estereotipada, com um sentimento de necessidade premente, com um sentimento de incapacidade para evitar o comportamento, mesmo sabendo que se vai prejudicar. É uma força que a pessoa sente dentro de si, superior à própria vontade, que vai gerando uma ansiedade crescente e que só surge um apaziguamento dessa ansiedade quando o comportamento é consumado.
Mesmo perante todas as evidências de que estão a mentir, estas pessoas continuam a fazê-lo porque não conseguem parar. E, muitas vezes, justificam as mentiras com outras mentiras, numa espiral que acaba em conflito ou com o afastamento da pessoa a quem mentem.
As pessoas não obtêm nenhum benefício ou gratificação prática. Aparentemente, mentem por mentir. Mentem de forma automática. Estão viciadas na mentira.
Nos casos das pessoas que aceitam ajuda e se cometem num processo terapêutico, pode verificar-se que existem fatores motivacionais inconscientes: a defesa contra uma desorganização psicótica, a revivência de experiências traumáticas, a melhoria da precária autoestima e a sensação angustiante de não existir.
As mentiras tendem a crescer em número e complexidade porque muitas vezes, para tornarem a primeira mentira plausível e mais convincente, acrescentam outras mentiras, cada vez mais elaboradas e enredadas.
Enquanto as pessoas em geral mentem em média uma ou duas vezes por dia, as que sofrem de Mentira Patológica mentem em média dez.
Os temas das mentiras são variados, mas predominantemente têm a ver com a própria pessoa, geralmente para se engrandecerem (para melhorarem a autoestima) ou para serem vistas como vítimas (por vezes de experiências traumáticas), para poderem ser cuidadas ou ajudadas.
Embora conscientes de que estão a mentir, nem sempre conseguem perceber o impacto que têm nos outros. Mas quando têm, sofrem com isso e, em muitos casos, atormentam-se com sentimentos de culpa e vergonha.
A Mentira Patológica tem consequências devastadoras na vida das pessoas, provocando-lhes enorme sofrimento e afetando a sua vida social, profissional e interpessoal, levando muitas vezes a que estas pessoas acabem por serem abandonadas pelos outros.
Gostaria de salientar que as pessoas que sofrem de Mentira Patológica não são psicopatas e não são indivíduos frios e calculistas que querem enganar os outros. São pessoas que sofrem e lutam contra a força interior irresistível para mentirem. E que precisam e merecem ser ajudadas.


BIBLIOGRAFIACurtis, Drew; Hart, Christian (2023) - "Pathological lying : theory, research, and practice". American Psychological Association. Washington (2023)