A ORELHA DE VAN GOGH
Porque é que Van Gogh cortou a própria orelha?
A primeira questão a considerar sobre esta pergunta é o próprio "Porquê". Todos nós, os humanos, temos a tendência - ou melhor: a necessidade - de arranjar uma resposta, uma justificação, qualquer solução para as dúvidas que nos geram algum tipo de angústia. E quando não há uma resposta que seja satisfatória e definitiva, a angústia não é completamente dissipada e continua a atuar.
Neste caso, a pergunta refere-se a um comportamento anormal, afastado de todos aqueles que compõem o repertório dos comportamentos humanos. Estar triste ou alegre, ser introvertido ou extrovertido, ser generoso ou egoísta, ter bom ou mau caráter, estão na base da variedade dos comportamentos das pessoas, mas cortar uma orelha, NÃO. E quando um comportamento entra nesta categoria, é acionado um alarme para chamar um psiquiatra. Muitas vezes os psiquiatras têm a tendência - e a incumbência - de atribuir um significado aos comportamentos, sobretudo os que são desprovidos de lógica aparente. E quando isso não é possível, procuram classificá-los e integrá-los nos critérios que enquadram e consubstanciam as doenças.
Então, no caso de Van Gogh, o que aconteceu? O que é que pode explicar um comportamento tão inusual e anormal como aquele? Que doença o levou a cometer aquela amputação? É uma questão legítima, obviamente, mas como é que ter determinada doença "explica" um comportamento? Se a resposta for "porque essa doença tem como característica esse tipo de comportamento", estaremos a caminhar num círculo fechado que não leva a nenhum lado. Se, por exemplo, dissermos que, tendo alucinações auditivo-verbais (como acontece na esquizofrenia), ouviu uma voz que o obrigou a cortar a orelha, estaremos a dar uma resposta minimamente satisfatória. Mas, nesse caso, seria legítima a questão: "Está bem. Mas porquê?" E a dúvida mais profunda continuaria por responder.
Mas, vamos por este caminho da busca de uma doença para vermos aonde ele nos pode levar.
Foram muitos os psiquiatras que propuseram diagnósticos e foram também numerosas as hipóteses levantadas. O grande psicopatologista Karl Jaspers, por exemplo, defendeu que Van Gogh sofria de esquizofrenia. Outras possibilidades, como comportamentos alterados provocados pelo chumbo das tintas, a síndrome de Ménière (que afeta os ouvidos), a epilepsia parcial complexa (que pode provocar alterações comportamentais incomuns), a porfiria intermitente aguda e a psicose esquizoafetiva foram também adiantadas. A doença Bipolar foi também aventada, com fundamentos plausíveis.
Curiosamente, a Perturbação Borderline não tem sido referida, e, no entanto, é talvez a mais provável.
A hipótese foi defendida por Erwin van Meekeren, um psiquiatra Holandês, que revisitou a história do pintor. Um dos aspetos que salientou foi a sua "hipersensitividade interpessoal extrema". Para além disso, considerou que a vida de Van Gogh foi marcada pela instabilidade — no humor, nos comportamentos e nos relacionamentos interpessoais. As crises de raiva (aparentemente imprevisíveis e injustificáveis) foram de igual modo comuns, tal como o padrão de impulsividade que mostrou em situações variadas, nomeadamente no abuso de substâncias.
No campo das relações amorosas (ou das tentativas de lidar com elas), foram muitas as rejeições que sofreu e também numerosas e pouco adequadas as reações às mesmas.
Numa delas, ficou de rastos e num total abatimento. Numa outra, perante a dor de um amor não correspondido, manteve a mão direita sobre a chama de um candeeiro, até cair inanimado.
Mas a mais dramática e radical foi a célebre amputação do lóbulo da orelha. Neste caso a relação era diferente. Era uma relação de amizade — intensa, emotiva, obsessiva — com o pintor Gauguin. Um dia, encontrando-se ambos num bar numa véspera de Natal, Gauguin, cansado das discussões e conflitos que se multiplicavam, anunciou que iria viver para outra cidade.
Como reação, Vincent atirou-lhe absinto para a cara. Gauguin ainda levou o amigo de volta a casa, mas Van Gogh perseguiu-o na rua, ameaçando-o com uma navalha. De novo, Gauguin acompanhou-o a casa, deixou-o lá e saiu definitivamente, mas desta vez, passado pouco tempo, Van Gogh acabou por desferir o golpe fatal no lóbulo da própria orelha. Não aguentou a angústia e a dor do abandono e, como forma de lidar com aquela situação insuportável, automutilou-se.
Esta automutilação inscreve-se sem dúvida no conjunto dos comportamentos autolesivos (que são reativos a rejeições ou ameaças de abandono), muito característicos da Perturbação Borderline.
Este ponto é da maior importância porque, mais do que outros sintomas da doença, estes comportamentos contêm a virtude de poderem ser compreendidos pelo significado e pelas funções que possuem. Vejamos.
Os comportamentos autolesivos são aqueles que procuram provocar dano corporal, mas sem intenção de provocar a morte. Os mais frequentes são as intoxicações medicamentosas voluntárias e os cortes com arma branca (faca, canivete, x-ato) nos antebraços, mas podem ser muitos outros: cortar-se noutras zonas do corpo (coxas e abdómen); arranhar e provocar feridas na pele; queimar-se com cigarros ou com o próprio lume; bater-se ou esmurrar-se; engolir os mais variados objetos, alguns de dimensões que se julgaria impossível serem engolidas, como facas ou crucifixos; atirar-se contra a parede; bater com a cabeça com violência, na parede ou no chão; injectar produtos lesivos no corpo; introduzir objetos cortantes na vagina, uretra ou ânus; arrancar cabelos; entre muitos, muitos outros.
Como disse, estes comportamentos não têm como intenção provocar a morte. Então, porque é que eles acontecem? O que leva alguém a tratar-se desta maneira?
As razões são muito variadas. Uma forma de podermos tentar compreender a adoção destes comportamentos é considerarmos que eles têm uma função. Estas funções muitas vezes não são plenamente conhecidas pelo próprio. As pessoas levam a cabo os comportamentos porque qualquer coisa muito forte dentro delas as impele irresistivelmente a isso. Mas, o quê? A resposta pode ser dada em duas palavras: diminuir o sofrimento. Por paradoxal que pareça, os comportamentos autolesivos aliviam o mal estar, diminuem a angústia e ajudam a regular as emoções, mesmo considerando que o seu efeito não é duradouro e que, em si mesma, a solução não é saudável.
Estes comportamentos muitas vezes são levados a cabo em privado, sem que os outros sequer sonhem, situação que pode prolongar-se até por anos.
Outras vezes, os comportamentos visam provocar uma reação nos outros. Por vezes é uma forma de os controlar ou punir, mas outras é uma forma de se fazerem ouvir, de mostrarem a intensidade do sofrimento, de levarem os outros a terem compaixão e a ajudarem a aliviar o sofrimento, de terem acesso a formas mais eficazes de ajuda, como serem levados aos serviços de Urgência dos hospitais ou mesmo serem internados.
Apesar das funções que podem desempenhar, estes comportamentos são patológicos e podem levar a consequências muito graves, como a própria morte.
Ainda a propósito de Van Gogh, em vez de encararmos aquele comportamento como um ato tresloucado ou sem sentido, ou o sintoma incompreensível de uma qualquer doença, creio que seria preferível considerarmos que foi a única "solução" que lhe foi acessível para atenuar a dor insuportável do abandono, como acontece tantas vezes com as pessoas vítimas dessa doença tão ingrata e perturbadora como é a Perturbação Borderline.
BIBLIOGRAFIA
Meekeren, Erwin (2003) - "Starry starry night - life and psychiatric history of Vincent van Gogh". Benecke N. I., Amsterdam, 2003.